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O sorriso dourado da senhora de vestido azul desfila cintilante pelo corredor do coletivo, enquanto passamos pela Caixa Cultural, onde dois rapazes reluzem escorados na parede de pedras ardentes, depois de estacionarem o ônibus da banda Alucinados por Forró no outro lado da via. Eles se beijam de língua e planejam ir de penetra na festa tropical de logo mais à noite, na casa de eventos do restaurante Lô, que acabou de receber seis painéis cobertos por folhas naturais transportados em uma caminhonete caindo aos pedaços.
Eu poderia ter vindo a pé.
Adiante, número 96, Galpão da Felicidade e no 14 uma moça de blusa branca, pantalona curta e tiara de micro florzinhas defende energicamente seu ponto de vista diante de um homem de quem nada lembro. Samay Fashion, Talu Art Praia, Lady Moda 13. Posto BR. Uma senhora com camisa do Fortaleza exibe o cartão da gratuidade, recusa assento preferencial e aguarda destino, segurando firme a barra de ferro coberta por plástico adesivo amarelo preguento deslizante. Nosso Circular dobra na Alberto Nepomuceno, onde à esquerda passa um vulto da José Avelino e seu comércio insone.
Uma garotinha brilhante me vê saltar os degraus do ônibus e pousar na calçada em frente ao Comando da 10ª Região Militar, mais conhecido como o forte que mirava seu canhão de maior calibre para a vila e não para o mar. Eu estava convicta de que sairia flanando pela alma encantadora das ruas do Centro afinal sábado é dia de sol mesmo quando não há sol, dia de desenrolar perrengues e passear ao mesmo tempo, mas perdi de súbito todas as vontades, que se transformaram em bochechas, ombros, punhos e tornozelos sugados para o centro da terra. Que tal por aqui, ok, mova–se, é tão estranho, devagar, me sinto pesada, confie, eu não tenho essa espiritualidade toda, vá, e se não for esse o caminho? Pouco importa.
Subo pela Doutor João Moreira, dobro na Major Facundo e persigo uma mulher de cabelos loiros bem lisos, inteligentes, apertada em uma blusa azul de botões que tenta escapar dos chuviscos percebidos somente por mim. Ela segura um copo transparente, vertendo água gelada, tão pequeno pra quem tem sede, tomou três antes de sair, este leva para o vigia da imobiliária, tenho quase certeza que sim.
Até hoje, as lojas de tecido me agoniam por não terem onde sentar. No 322, um cassino, suponho. No número 377, roupa masculina para gordos. Viro à esquerda para reencontrar um amado enquadramento, que sei mas não sinto: no final da Castro e Silva a Catedral. Encaro o edifício Oriente e admito saudades de mim, a antiga deslumbrada com toda sorte de belo na rua: pessoa, árvore, passarinho, luz do sol no mês de maio. Entrei nesse prédio duas vezes. Corredores escuros, janelas cerradas, venezianas destravadas, piso talvez de pastilhas cinzas, iguais às de fora. Um dia ainda assisto às madrugadas de autógrafos em spray, pessoal escalando, escalando, escalando, já pensou a adrenalina, moradores ajudando, ajudando, ajudando, porque é claro a galera do pixo tem cúmplices.
Quantas são as existências? Mudei ou sequei ou morri? Queria tanto ver a moça africana que preenche com henna as sobrancelhas das clientes, cadeira na calçada, uma amiga achou a minha cara, coisa impossível é encontrar o que quer que seja quando não há pelo menos um trisco de desejo. Cabos emaranhados nos postes balançam e, até dois mil e vinte e tantos, dizem, esse engodo vai ser subterrâneo. Passar um café em segredo: pura ilusão.
Meu Circular vem, buzina e para, motor em ponto morto, abre a porta da frente, catraca gira, não vi quem passa. Decidi ser a pedestre que atravessa a avenida na faixa e cruza com negociantes indianos e suas sacolas jeans gigantes. Pessoas dirigem digitando e tento prever o que serão capazes de fazer em dez anos. Ficar sem celular é silêncio, solidão e o quê mais?
Desistir de desistir é o quê? Coragem? Vontade de afetar e ser afetade?
Uma placa. Lâmpada fluorescente dentro do vidro leitoso, letreiro em preto e vermelho. Escritório de Contabilidade. Fazemos sua declaração. Rua Sobral 16, sala 2. Queria uma igual, mas não sei o que escreveria nela. Na Conde D´eu, ar–condicionado faz chuva e isso é tão anos 80 que logo me lembro do terremoto de 20 de novembro de 1980, dia em que o edifício Solange correu pro pilotis de camisola, contou minha mãe. Na loja que reparo enquanto visito essa memória herdada, uma senhora recolhe com um gancho dois gibões de couro dançantes, suspensos ao lado de seis tímidos regadores azuis. Será que ela frequenta o vizinho Centro Cultural Banco do Nordeste, onde já foi o Mercado Central, labirinto de magníficos caminhos de mesa alvíssimos?
Vento, vento, vento.
Escadaria da São Paulo. Capim santo pra acalmar. Eucalipto pra gripe, tosse e dor de cabeça. Angico, lambedor. Aroeira, inflamação. Conheci o último ascensorista do edifício General Tibúrcio, mas perdi seu nome no passado. Partiu, se aposentou, está de férias, mudou de turno? Aprovou a nova decoração da recepção? Paredes e colunas envelopadas de amarelo e preto, tal qual quartel general de milícia miliciana?
Temos pastel de carne com ovo. Água de coco de verdade, a senhora não vende mais?
Ensurdecedores periquitos. Damas ou gamão? Dominó. Sebo de livros dentro do Lions Bar. Sim, Diana, na noite de regresso ele briga por qualquer motivo, enquanto Rachel de Queiroz, que ganhou lírios brancos de quem surrupiou seus óculos redondinhos, confabula sobre lentes de contato gelatinosas com uma moça nua, abraçada à sua mochila, chaveirinhos de coruja em todos os feches.
– Em uma manifestação, uns jovens subiram nesse leão e, quando passou o furdunço, vim aqui: a boca da cobra estava toda quebrada. Não era de bronze, como eu pensava. Catei os pedacinhos, de cimento. Estão comigo, dentro de um saquinho. Quero conseguir uma audiência com o secretário da Cultura, para entregar nas mãos dele a boca da cobra. Existem fotos antigas desse monumento, podem recompor como era antes. Veio de Paris.
Estou em um tour. Adolescentes de farda, professora que eles nunca esquecerão, duas mulheres aleatórias e essa guia que me comove. Nada que tire pedaço, exceto o fedor de mijo e merda.
– Os restos mortais do General Tibúrcio, que lutou na Guerra do Paraguai, deveriam estar nessa cripta. Uma vez, desci para olhar. Afastei a lápide, que estava quebrada, a caixinha completamente vazia. Com certeza, levaram os ossinhos do homem.
Se estivessem no recipiente, a guia que me comove resgataria uma falange, tão miudinha, que falta faria, guardaria no saquinho, onde já repousa o pedaço da boca da cobra do leão, enfiaria na gaveta dos achados não são roubados, depois entregaria o resto dos restos ao Iphan e finalmente daria entrevista para o Canal 10.
A Igreja do Rosário dos Pretos é a mais antiga de Fortaleza. Não sabia. Ou não lembrava? Nunca sei a diferença. Abre em horários marcados, depois de assalto seguido de assalto. Semana passada, entrei. Piso e bancos rangendo. Enterravam pessoas lá. Ao redor. Dentro. E até nas paredes da igreja–cemitério. Em 2004, durante uma escavação, encontraram ossadas de dez adultos, uma criança e nada impede que sejam vestígios de antepassados meus ou de alguém que conheço.
Uma garota esguia, cabelos curtos pretos, óculos de aros bem finos sobre olhos que poderiam ser de uma oriental, desliza uma esferográfica num bloquinho, sem revelar se desenha ou escreve.
- Gostando?
- Achando engraçado, mas com um pouco vergonha alheia. Sou Jana. Prazer.
- Prazer, Bárbara.
Jana era um pouco mais alta do que eu. Voz grave, sotaque daqui, de pé nas linhas pretas da praça, caminho do bonde que já passou neste chão. Quando chego em um lugar, quero logo saber se tem alguém pra amar.
Uma mulher negra, nua, passeia em direção aos livreiros, calçando tênis em forma de botinas, enquanto do primeiro andar do Edifício Lions alguém arremessa um longo rodado de algodão branco, alças finas e renda na barra. Ela levanta os braços, aterrissagem perfeita em seu corpo, e dança em giros até desaparecer em perfume de rosas de Damasco.
Na Guilherme Rocha até que corre vento, mas ao meio–dia o que se pede no Centro é neve. Poderia cair já, aqui, bem em frente à Caixa Econômica, que fica no prédio azul do antigo Palacete Ceará, onde as moças, debruçadas nos parapeitos das sacadas, piscavam pros rapazes, antes do baile do Clube Iracema começar. As narrativas das elites me dão uma puta impaciência e Jana prende a franja com uma fivela amarela, abanando com o bloquinho a testa suada.
Por volta de 1920, em cada canto da Praça do Ferreira, havia um café. Java. Do Comércio. Elegante. Iracema. Na ditadura militar, deixaram apenas quatro árvores, poucos bancos, quentura insuportável pra ninguém se juntar. Agora, na praça, uma jovem amamenta seu bebê, os dois deitados num colchão surrado, não vi pano nem coberta, enquanto Jana, mais afastada, conversa com uma senhora sentada no mobiliário urbano, pernas cruzadas sobre duas sacolas, uma estampada com mangas e maçãs enormes, a outra com a cara de uma onça laranja de olhos azuis.
– A Dona Edite me pediu um cigarro e eu não tinha. Menina, ela me disse que a neta de 15 anos engravidou. Fiquei sem saber o que falar.
– Foi? Mas, de longe, você parecia bem espontânea.
– Voz é tão bonito, né? O mais bonito, eu acho.
– Jana, assim, eu não tô numa fase muito Praça do Ferreira, sabe, eu vou pensar em outro lugar pra ir, sei lá, queria dar umas voltas por aí, tomar meu rumo, sabe.
– Hum, que rumo, Bárbara?
– Ah se eu soubesse.
– Então tá, eu vou continuar com o grupo até o Passeio Público, marquei com uma amiga lá. Aí, aparece, de repente, se teu rumo for coletivo, claro.
A visita guiada estava do outro lado da praça, perto do antigo Excelsior Hotel, aquele do coral de Natal nas varandas. Nunca vi ao vivo, contam que emociona. Jana anda rápido, dá uma corridinha, alcança o pessoal em frente à bilheteria do Cine São Luiz e seguem pela Major Facundo à direita.